Por detrás da renúncia do Papa
há algo mais
Nas poucas vezes em que um papa
renunciou as razões foram Dinheiro,
poder e sabotagens. Corrupção,
espionagem, escândalos sexuais
POR SAUL LEBLON
A presença ostensiva desses
ingredientes de filme B no noticiário do Vaticano ganhou notável regularidade
nos últimos tempos.
A frequência e a intensidade
anunciavam algo nem sempre inteligível ao mundo exterior: o acirramento da
disputa sucessória de Bento XVI nos bastidores da Santa Sé.
Desta vez, mais que nunca, a
fumaça que anunciará o 'habemus papam' refletirá o desfecho de uma fritura
política de vida ou morte entre grupos radicais de direita na alta burocracia
católica.
Mais que as razões de saúde,
existiriam razões de Estado que teriam levado Bento XVI a anunciar a renúncia
de seu papado, nesta 2ª feira.
A verdade é que a direita
formada pelos grupos 'Opus Dei' (de forte presença em fileiras do tucanato
paulista), 'Legionários' e 'Comunhão e Libertação' (este último ligado ao
berlusconismo) já havia precipitado fim do seu papado nos bastidores do
Vaticano.
Sua desistência oficializa a
entrega de um comando de que já não dispunha.
Devorado pelos grupos que
inicialmente tentou vocalizar e controlar, Bento XVI jogou a toalha.
O gesto evidencia a exaustão
histórica de uma burocracia planetária, incapaz de escrutinar democraticamente
suas divergências. E cada vez mais afunilada pela disputa de poder entre cepas
direitistas, cuja real distinção resume-se ao calibre das armas disponíveis na
guerra de posições.
Ironicamente, Ratzinger foi a
expressão brilhante e implacável dessa engrenagem comprometida.
Quadro ecumênico da teologia,
inicialmente um simpatizante das elaborações reformistas de pensadores como
Hans Küng (leia seu perfil elaborado por José Luís Fiori, nesta pág.), Joseph
Ratzinger escolheu o corrimão da direita para galgar os degraus do poder
interno no Vaticano.
Estabeleceu-se entre o
intelectual promissor e a beligerância conservadora uma endogamia de propósito
específico: exterminar as ideias marxistas dentro do catolicismo.
Em meados dos anos 70/80 ele
consolidaria essa comunhão emprestando seu vigor intelectual para se
transformar em uma espécie de Joseph McCarty da fé.
Foi assim que exerceu o comando
da temível Congregação para a Doutrina da Fé.
À frente desse sucedâneo da
Santa Inquisição, Ratzinger foi diretamente responsável pelo desmonte da
Teologia da Libertação.
O teólogo brasileiro Leonardo
Boff, um dos intelectuais mais prestigiados desse grupo, dentro e fora da
igreja, esteve entre as suas presas.
Advertido, punido e
desautorizado, seus textos foram interditados e proscritos. Por ordem direta do
futuro papa.
Antes de assumir o cargo supremo
da hierarquia, Ratzinger 'entregou o serviço' cobrado pelo conservadorismo.
Tornou-se mais uma peça da
alavanca movida por gigantescas massas de forças que decretariam a supremacia
dos livres mercados nos anos 80; a derrota do Estado do Bem Estar Social; o fim
do comunismo e a ascensão dos governos neoliberais em todo o planeta.
Não bastava conquistar Estados,
capturar bancos centrais, agências reguladoras e mercados financeiros.
Era necessário colonizar
corações e mentes para a nova era.
Sob a inspiração de Ratzinger,
seu antecessor João Paulo II liquidou a rede de dioceses progressistas no Brasil,
por exemplo.
As pastorais católicas de forte
presença no movimento de massas foram emasculadas em sua agenda 'profana'. A
capilaridade das comunidades eclesiais de base da igreja foi tangida de volta
ao catecismo convencional.
Ratzinger recebeu o Anel do
Pescador em 2005, no apogeu do ciclo histórico que ajudou a implantar.
Durou pouco.
Três anos depois, em setembro de
2008, o fastígio das finanças e do conservadorismo sofreria um abalo do qual
não mais se recuperou.
Avulta desde então a imensa máquina
de desumanidade que o Vaticano ajudou a lubrificar neste ciclo (como já havia
feito em outros também).
Fome, exclusão social, desolação
juvenil não são mais ecos de um mundo distante. Formam a realidade cotidiana no
quintal do Vaticano, em uma Europa conflagrada e para a qual a Igreja Católica
não tem nada a dizer.
Sua tentativa de dar uma
dimensão terrena ao credo conservador perdeu aderência em todos os sentidos com
o agigantamento de uma crise social esmagadora.
O intelectual da ortodoxia
termina seu ciclo deixando como legado um catolicismo apequenado; um imenso
poder autodestrutivo embutido no canibalismo das falanges adversárias dentro da
direita católica. E uma legião de almas penadas a migrar de um catolicismo
etéreo para outras profissões de fé não menos conservadoras, mas legitimadas em
seu pragmatismo pela eutanásia da espiritualidade social irradiada do Vaticano.
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